Gustavo Costa* e Leandro Barreto**
Desde que foi publicado há quase um mês, o PL 4.199/2020 vem sendo tema de vários artigos, entrevistas e webinars. Alguns, talvez, com discussões até excessivamente acaloradas ou polarizadas, tendo em vista que a maioria dos envolvidos deve concordar com os objetivos expostos pelos três ministros (Infraestrutura, Economia e Secretaria-Geral) que assinam o projeto no que se refere às motivações para o desenvolvimento desse Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem: “Incrementar a oferta e a qualidade do transporte por cabotagem no país, aumentar a competitividade das empresas brasileiras de navegação, reduzir o custo logístico para o usuário do serviço e estimular o desenvolvimento da indústria naval nacional para a construção, jumborização, conversão, modernização, docagem e reparação de embarcações de cabotagem e para a criação de dois cargos de diretores ao quadro da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq e para a modificação das competências e estrutura do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT”.
É evidente que o projeto aborda assuntos complexos e que expõe interesses por vezes conflitantes das diversas classes (armadores, embarcadores, marítimos, estaleiros, terminais etc.) que orbitam a cabotagem, contudo, há de se reconhecer que os envolvidos, e suas entidades, de alguma forma participaram de vários debates e reuniões visando contribuir para o embrião do BR do Mar, durante longos meses (entre 2019 e meados de agosto de 2020).
Vale aqui resgatar que em 2019 o mercado recebeu com surpresa, e negativamente, o Projeto de Lei 2.948/2019, do senador Alvaro Dias (Podemos-PR), uma vez que não houve discussões com todos os agentes envolvidos na cabotagem, e que a senadora Kátia Abreu (PP-TO), por sua vez, apresentou no início de junho de 2020 o Projeto de Lei 3.129, com a seguinte justificativa: “Desde meados do ano passado aguardamos o encaminhamento ao Parlamento da chamada ‘BR do Mar’, seja por meio de medida provisória, seja por meio de projeto de lei. Como essa MP nunca chegou no Parlamento, resolvemos juntar algumas medidas constantes de projetos de nossa autoria, com outras do PL 2.948, de 2019, do senador Alvaro Dias, e mais outras que decorreram de diálogo que tivemos com o setor da navegação e seus embarcadores de carga, além de representantes dos usuários e do setor produtivo”.
Pode-se dizer que essa miríade de projetos de lei e interesses conflitantes vem gerando incertezas não apenas quanto ao texto final que será dado ao BR do Mar, mas, principalmente, quanto ao tempo que ele vai levar para sair do congresso, especialmente se o regime de urgência for derrubado, como defendem alguns setores.
Evidentemente, não faz sentido algum acreditar que um projeto que passou tantos meses sendo “gestado” pelas equipes técnicas do Ministério da Infraestrutura e da Economia estaria completamente equivocado. Como também não faz sentido acreditar que não existam pontos a serem aperfeiçoados. O próprio diretor do Minfra (Ministério da Infraestrutura) Dino Batista declarou num evento promovido pela Portos e Navios no último dia 3 de setembro que: “Todo debate em torno do assunto é bem-vindo e enriquece os resultados”.
A flexibilização das regras de afretamento de navios deve de fato resultar em mais capacidade, dinamismo e competição, ao passo que, a exemplo do que já acontece em 80% dos países do mundo com um setor de cabotagem forte, manter esse setor restrito às EBNs (empresas brasileiras de navegação) protegerá os embarcadores brasileiros de confiarem suas cargas a empresas “aventureiras”. Importante lembrar que a “falta de confiabilidade” foi um dos principais motivos de resistência à cabotagem apontados em recente pesquisa realizada pela ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).
Por outro lado, uma possível crítica ao BR do Mar é a falta de análises por segmento de mercado da cabotagem (granel líquido e gás, granel sólido, contêineres, carga geral e navios de atendimento a plataformas – PSV), uma vez que estes possuem características únicas em seu gerenciamento (refletido no potencial de investimentos) e mercados (refletido no potencial de cargas).
O segmento de granel líquido e gás está diretamente relacionado à Petrobras, que detém controle da demanda e da oferta, gerando uma demanda derivada para o segmento de PSV, principalmente no quesito tripulação. O segmento de granel sólido, por sua vez, atua no segmento da cabotagem industrial (manganês no Norte e sal do Nordeste para o Sudeste), e seu potencial de crescimento independe do agronegócio como ocorre no longo curso e na navegação fluvial.
Já o segmento de contêineres concorre tanto com o de carga geral no mesmo mercado – a logística nacional de equipamentos (transformadores, turbinas e pás eólicas, por exemplo) e insumos industriais (bobinas de aço, por exemplo) – quanto com o modal rodoviário nos segmentos de bens de consumo, alimentação, higiene e limpeza.
Poder-se-ia afirmar que o BR do Mar foca o segmento de contêineres da cabotagem, que cresce de modo constante desde 2010, e espera-se que, com a maior flexibilização dada ao gerenciamento da capacidade de transporte, os fluxos atuais cresçam ainda mais e novos fluxos logísticos sejam gerados utilizando a cabotagem. O maior problema nessa abordagem é que aparentemente não existiram estudos consistentes que balizassem a existência desses potenciais fluxos.
Portanto, outro importante “enriquecimento” ao PL 4.199 seria a criação de uma base de dados de CTe (Conhecimento de Transporte Eletrônico) – nada que comprometesse o sigilo fiscal/comercial das empresas – capaz de permitir ao Estado um melhor direcionamento de suas políticas públicas e investimentos em infraestrutura, assim como aos armadores uma maior assertividade no dimensionamento do mercado e na prospecção de carga.
Acreditando-se que esses potenciais fluxos existam, a BR do Mar é um avanço na regulação atual. Porém, para não falar na questão do ICMS sobre o combustível dos navios (de competência dos estados da Federação), há alguns outros pontos que necessitariam de atenção durante as análises e discussões no Congresso, visando efetivar os motivos expostos pelos ministros:
• Não autorizar embarques de cabotagem em navios de longo curso (recurso de circularização de cargas), mesmo por EBN, visando aumentar o mercado potencial para novos entrantes que aloquem capacidade de transporte ao mercado;
• Reduzir o nível de discricionariedade dado à figura do ministro, realocando as autorizações e controles necessários à BR do Mar ao colegiado da ANTAQ;
• Rediscutir o regime trabalhista para tripulação em navios afretados – da forma como está, nem os armadores nem os marítimos estão satisfeitos;
• Incluir artigos que promovam a desburocratização da cabotagem: isenção de livre prática, adoção do CTe multimodal como documento válido em toda a cadeia de transporte (eliminando emissão dos CTes específicos, modificando o artigo 42-B, do ajuste Sinief 06/03) etc. O tema desburocratização já foi bastante discutido pela Abac (Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem) e os exemplos acima podem ser complementados;
• Considerando-se a crescente importância dos volumes feeder na cabotagem, faz-se necessária uma revisão dos procedimentos de início e conclusão de trânsito, visando redução do tempo de trânsito total das cargas de exportação e importação utilizando a cabotagem (eliminação dos processo de vistoria no porto de transbordo);
• No termo de compromisso, que a EBN autorizada na BR do Mar deve assinar, consta: “Obrigará a apresentar […] periodicamente informações relativas às seguintes diretrizes: […] transparência quanto aos valores do frete”. Transparência não pode significar divulgação ou ideia de regulação nos fretes praticados – até porque esses já são amplamente “regulados” pelos fretes do caminhão.
Tendo em vista que o transporte de cabotagem é intrinsecamente uma operação multimodal, também é possível dizer que o BR do Mar mostrou-se bastante tímido no quesito incentivo à multimodalidade e pode ter sido até certo ponto bucólico ao propor terminais portuários exclusivos à cabotagem, já que a carga de transbordo vem ganhando cada dia mais espaço nos navios da cabotagem e, portanto, esses precisam operar nos mesmos terminais que os navios de longo curso.
Em outras palavras, a espinha dorsal do projeto (ampliar oferta de capacidade) traz avanços, mas sem dúvida pode ser aperfeiçoada no Congresso, desde que continue seguindo uma linha técnica e busque promover um debate saudável entre as partes na busca por um consenso.
O pior cenário neste momento seria que essa falta de entendimento pudesse inviabilizar ou desconfigurar totalmente o projeto e, com isso, manter subaproveitado todo o potencial socioeconômico e ambiental que esse modal pode proporcionar a um país com as características do Brasil.