Fernando Gomes de Souza Ayres e Augusto Bercht*
O ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), por óbvio, tem impacto em todas as operações envolvendo mercadorias e determinados serviços (transporte intermunicipais e interestaduais e comunicações).
Uma de suas características é a busca pela neutralidade, utilizando instrumentos como a não cumulatividade e a chamada seletividade, de acordo com a essencialidade do produto ou serviço tributado. Seletividade expressamente prevista no artigo 155, §2º, inciso III da Constituição Federal.
Há muito a seletividade do ICMS tem gerado discussões relacionadas à graduação das alíquotas aplicadas pelos estados para alguns produtos, tal como a energia elétrica que, apesar da sua essencialidade, tem sido tributada com as alíquotas mais elevadas. Alcançando 30% em alguns estados.
Embora relevante para todos os setores consumidores de energia elétrica, a discussão a respeito da seletividade e da alíquota de ICMS incidente ganha extrema relevância quando consideramos a atividade de saneamento. De acordo com o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), depois daquelas relacionadas a pessoal (direta ou indiretamente), a maior despesa nas empresas de saneamento no Brasil é com energia elétrica. Em 2019 totalizou 15,4% dos custos do setor1.
No mesmo ano, as despesas com energia elétrica dos prestadores de serviço de saneamento participantes do SNIS atingiram R$ 7,12 bilhões, com consumo de 13,26 TWh, compostos por 11,84 TWh com abastecimento de água e 1,42 TWh com esgotamento sanitário2.
Dessa forma, a discussão a respeito da seletividade do ICMS ganha outra dimensão para o setor, que é foco de esperança de novos investimentos após a aprovação do chamado Marco Legal do Saneamento Básico.
O assunto está atualmente em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal), nos autos do Recurso Extraordinário nº 714.139/SC, com julgamento iniciado em fevereiro de 2021 e que já conta com dois votos, proferidos pelo relator, ministro Marco Aurélio Mello, e pelo ministro Alexandre de Moraes.
O ministro Marco Aurélio deu parcial provimento ao recurso extraordinário do contribuinte, por entender que, tendo o legislador adotado a seletividade, essa, por conformidade ao texto constitucional, deve se pautar pela essencialidade.
No caso, o ministro entendeu que, considerando o caráter eminentemente essencial da energia elétrica e dos serviços de telecomunicações, o legislador não poderia prever, para tais itens, a mesma alíquota que resguarda para os produtos supérfluos, devendo, portanto, ser aplicada a alíquota básica que, no caso do estado de Santa Catarina – objeto da discussão do leading case –, é de 17%.
O ministro entendeu ser parcialmente procedente o recurso extraordinário, pois não acatou o argumento de que a alíquota de 12% voltada para consumidores domiciliares de baixo consumo feriria o princípio da isonomia.
O ministro Alexandre de Moraes entendeu a questão de maneira bastante diversa. Para o ministro, apesar de a Constituição determinar que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade, a essencialidade não é o único elemento que poderia influir na definição da alíquota, havendo também influência de outras razões “[…] considerando-se a finalidade do bem tributado e as características do respectivo consumidor, a fim de dar efetividade à isonomia e ao princípio da capacidade contributiva”.
Nesse raciocínio, seria lícito aos estados preverem alíquotas superiores em casos de uso industrial e comercial de energia para aqueles demandantes de maior consumo. O argumento seria que tais consumidores demonstrariam maior capacidade contributiva.
Ao nosso ver, duas críticas principais podem ser feitas ao voto. Em primeiro lugar, não se entende correta a consideração de que a capacidade contributiva deveria ser elemento a ser considerado conjuntamente com a essencialidade para fins de determinação da alíquota. Isso pois a capacidade contributiva, como elemento para determinar a carga tributária incidente sobre determinado contribuinte, só pode ser auferida após o contribuinte ter realizado os gastos necessários para assegurar sua existência mínima e manter a sua fonte de renda. Só depois que se elimina os gastos essenciais é que se passa a demonstrar capacidade contributiva.
Cabe considerar, ainda, se o consumo elevado de energia pode ser considerado como um efetivo sinal de maior capacidade econômica ou como uma característica inerente a alguns setores da economia, como o do saneamento. Parece-nos que a resposta correta é a última: um elevado gasto de energia elétrica não é elemento apto a ser utilizado para auferir maior ou menor capacidade contributiva.
Com o julgamento do RE nº 714.139/SC o Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião da Constituição Federal, pode dar um passo claro na direção que preserva os valores acima mencionados.
O tribunal pode, por outro lado, premiar a visão puramente arrecadatória dos estados e, por meio de argumentos que julgamos inadequados, permitir que a legislação preveja alíquotas maiores justamente para setores que utilizam mais a energia elétrica, como o de saneamento, sem demonstrar, com isso, qualquer potencial maior para contribuir do que outros setores que não são tão dependentes desse recurso.
Espera-se que o tribunal vá pelo primeiro caminho, premiando a coerência do direito e a plena concretização da Constituição Federal.