Joaquim Augusto Melo de Queiroz*
As alterações promovidas pela Lei n.º 14.133/2021 trarão impactos significativos à dinâmica das licitações e contratos públicos de diversos setores industriais. Embora ainda seja prematuro precisar a exata extensão dessas alterações em cada segmento produtivo, é possível discernir seus efeitos mais expressivos em alguns ramos específicos da indústria. O setor farmacêutico é um deles.
As particularidades que revestem as atividades do segmento farmacêutico, e a singularidade dos contratos firmados por estas empresas com a Administração Pública, direcionarão a análise destas novas regas. O presente artigo, contudo, não cuidará de exaurir a amplitude de todas as alterações que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos carreará a este setor. Mesmo porque algumas delas ainda serão verificadas com a maturação dos estudos sobre a nova lei e a experiência prática decorrente da sua aplicação. Serão examinadas, no entanto, as modificações mais candentes e alguns pontos objetivos capazes de ensejar maiores discussões.
De forma a sistematizar a análise aqui empreendida, as observações serão apresentadas em tópicos objetivos, correlacionando-se algumas das principais inovações da lei com os seus reflexos para o segmento farmacêutico.
1. Princípio do planejamento
O princípio do planejamento (art. 5° da Lei n.º 14.133/2021) se assenta na necessidade de a Administração adotar as providências mais adequadas para a satisfação de suas necessidades, antevendo cenários diversos e possíveis intercorrências com o intuito de orientar a escolha mais acertada. Este princípio não encontrava correspondência na Lei n.º 8.666/1993. Sua relevância para o setor farmacêutico decorre de sua interrelação com as etapas do procedimento licitatório e da performance contratual. O princípio é plasmado em diversas providências e instrumentos utilizados ao longo da licitação, desde a sua fase interna ou preparatória.
De saída, a elaboração do Plano Anual de Contratação, por exemplo, alinha- se com o planejamento orgânico da estimativa do quantitativo de medicamentos necessários para assegurar o fornecimento contínuo ao longo do ano. O Estudo Técnico Preliminar, voltado à definição da solução mais congruente com as necessidades da Administração, compatibiliza-se com a definição do modelo em que se aperfeiçoará a contratação (inexigibilidade, dispensa, pregão – com a possibilidade de utilização do procedimento auxiliar do sistema de registro de preços etc.). A configuração detalhada do Termo de Referência, viabilizadora da delimitação precisa do objeto a ser contratado, influirá nos licitantes efetivamente qualificados a fornecer o produto. Nesse sentido, pondere-se, em relação ao Termo de Referência, sobre as discussões travadas acerca de medicamentos ofertados em formas farmacêuticas diferentes1 daquela declinada no edital, e quanto à possibilidade de intercambialidade entre medicamentos biossimilares e biológicos originadores2.
Em tal perspectiva, o Termo de Referência irradiará efeitos sobre a exata definição do medicamento buscado e dos licitantes que poderão fornecê-lo.
2. Matriz de alocação de riscos
A matriz de alocação de riscos versa sobre a possibilidade (e, em alguns casos, a obrigatoriedade) de inclusão de cláusula com o objetivo de definir expressamente determinados riscos e responsabilidades contratuais. A matriz de alocação de riscos encontra-se disciplinada pelos arts. 22 e 103 da nova lei. Para a indústria farmacêutica, a pertinência desta cláusula coincide com os contratos que envolvem transferência de tecnologia (PDPs – Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, por exemplo), nos quais a minuciosa fixação da matriz de risco afigura-se indispensável. Além disso, nos contratos que encerram fornecimentos de grande vulto (acima de R$ 200 milhões), essa cláusula se torna impositiva (§ 3° do art. 22).
3. Diálogo competitivo
Umas das maiores novidades da Lei n.º 14.133/2021. O Diálogo Competitivo (art. 32) é uma nova modalidade de licitação, com inspiração no modelo europeu (Diretiva Europeia). Em linhas gerais envolve o diálogo entre a Administração Pública e licitantes previamente selecionados para a concepção de uma solução que atenda às necessidades da Administração, quando há incerteza ou indeterminação a respeito da melhor alternativa para o objetivo perseguido pela Administração Pública.
A possibilidade de utilização do Diálogo Competitivo, na área farmacêutica, pode abranger desde o desenvolvimento de soluções para tratamentos inovadores e urgentes, cuja eficácia ainda seja cientificamente incerta (R&D), como também situações de risk sharing relacionadas a terapias inovadoras, em que se tangencie questões sofisticadas de farmacoeconomia. Há, ainda, a possibilidade de emprego do Diálogo Competitivo para a formulação de modelagens modernas relativas à estrutura jurídica e financeira de contratos do segmento. Exemplos práticos desta última hipótese são os contratos para a transferência de tecnologia para produção de insumos, encomendas tecnológicas e contratos para o fornecimento de medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras e ultrarraras, permeados por negociações financeiras intrincadas. O desenho de estruturas financeiras arrojadas e sofisticadas nestes casos pode encontrar amparo na utilização do Diálogo Competitivo.
Estas impressões sobre o primeiro bloco de tópicos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos correlacionados às atividades empresariais da indústria farmacêutica não esgotam, evidentemente, o tema. Diante da amplitude das alterações suscitadas pela Lei n.º 14.133/2021, as demais matérias, revestidas de grande controvérsia, serão examinadas em uma segunda parte deste artigo.