César Mattos*, Alexandre Messa**, Andrey Goldner Silva*** e Jonathas Bezerra de Souza****
O governo federal enviou ao Congresso o Projeto de Lei “BR do Mar”, que reforma o arcabouço regulatório da cabotagem brasileira, cujo regramento principal está na Lei 9.432 de 1997. A atual regulação da cabotagem foi formulada com o intuito de implementar uma política industrial que impulsionasse a indústria naval brasileira.
Com essa perspectiva, a legislação atual apresenta uma série de restrições à utilização de embarcações construídas no exterior. Em primeiro lugar, para se constituir uma empresa brasileira de navegação, faz-se necessária a posse de pelo menos uma embarcação nacional, o que gera uma relevante barreira à entrada no mercado. Em segundo lugar, para a empresa poder afretar (alugar) uma embarcação estrangeira a casco nu, é necessário que ela tenha uma determinada frota de embarcações nacionais (no jargão, a necessidade de lastro), o que impõe uma barreira significativa à ampliação da oferta de serviço de cabotagem na economia brasileira. Em terceiro lugar, a construção de embarcações, ao contrário da fabricação de todas os outros demais bens da economia, é isenta de toda tributação indireta (ICMS, PIS, Cofins e IPI). Já no caso da comercialização de embarcação estrangeira incidem todos esses tributos. O resultado disso é que a proteção à indústria naval é realizada não apenas pelo imposto de importação, mas sim deste com a soma de toda a tributação indireta, totalizando uma proteção próxima a 50% (enquanto a proteção média da economia brasileira é de 11,6%).
Porém, apesar de toda essa proteção, a indústria naval brasileira pouco se desenvolveu, além de não ter se mostrado capaz de produzir uma série de tipos de embarcações, tais como porta-contêineres e roll-on/roll-off. Salienta-se que esse fraco desempenho não foi por falta de recursos, uma vez que, além da proteção comercial, o setor conta com o financiamento do FMM (Fundo Da Marinha Mercante), que é alimentado continuamente pela arrecadação do AFRMM (Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante) – que, só em 2019, totalizou cerca de R$ 4,3 bilhões e representou um importante componente do Custo-Brasil.
Como resultado desse arcabouço regulatório, tem-se um desenvolvimento da cabotagem aquém das necessidades da economia brasileira. De fato, a atividade de cabotagem, apesar de uma base pequena, cresceu, segundo dados da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), apenas 3,37% entre 2010 e 2019, representando menos de 11% das cargas transportadas no país, apesar do potencial evidenciado pelo tamanho da costa brasileira e pelo fato de que cerca de 80% da população mora perto do mar. Ademais, a cabotagem está muito restrita à movimentação de poucos produtos, sobretudo ao transporte de petróleo entre as plataformas marítimas e o continente, o que, segundo estudo do BNDES1, representa cerca de 75% da carga movimentada. Com isso, tem-se uma incapacidade de contribuição da atividade para uma diminuição da concentração da matriz de transporte brasileira nas rodovias com cerca de 65% das cargas transportadas2.
As causas dessa reduzida expansão da cabotagem brasileira residem no fato de que a proteção à indústria naval teve duas consequências diretas. Em primeiro lugar, criou uma significativa barreira à entrada a novas empresas, dada a exigência de formação de uma frota de embarcações brasileiras para que a empresa seja autorizada a operar. Não à toa, o mercado de cabotagem é bem concentrado. Segundo estudo da ANTAQ, em 20183, o mercado de transporte de contêineres na cabotagem era dominado por três empresas, Aliança com 56%, Mercosul Line com 23% e Log-In com 22%. Em segundo lugar, a proteção impôs entraves à expansão da frota, dada a necessidade de a empresa já possuir uma frota de embarcações nacionais prévia para que ela esteja apta a afretar (alugar) embarcações estrangeiras.
Nesse contexto, o Ministério da Economia contribuiu com o Projeto de Lei do “BR do Mar” no sentido de remover os entraves aos investimentos no setor de cabotagem. Em primeiro lugar, retirando a necessidade de posse de embarcação brasileira tanto para a empresa ser autorizada a operar, quanto para ela poder afretar uma embarcação estrangeira. Ou seja, esta regra beneficia os agentes maiores, fazendo com que quanto menos (mais) se tenha (em navios), menos (mais) se possa ter. Isso torna mais grave a restrição à concorrência pelo fato de muitos navios utilizados na navegação de cabotagem serem de grande porte e complexos, exigindo alto nível de investimento.
Com isso, o intuito é remover os entraves à expansão da frota para cabotagem que essa exigência impõe. O “BR do Mar” prevê um período de transição de três anos para a plena liberalização, fazendo com que tanto as empresas incumbentes de navegação, quanto a indústria naval tenham tempo para se ajustar.
Em segundo lugar, garantiu-se que o setor de petróleo, assim como o restante da economia, também fosse contemplado com essa remoção de barreiras ao investimento. De fato, o setor petróleo tem sido alvo frequente de políticas de exigência de conteúdo nacional, encarecendo a produção e comprometendo a competitividade dessa atividade no Brasil. Como resultado dessa remoção de obstáculos ao setor, a Petrobras, por exemplo, estima uma redução de custos anuais em R$ 300 milhões na exploração e produção de petróleo. Esses números mostram que, para a devida expansão de produtividade do setor, é premente que se afaste a utilização do transporte marítimo como um meio de política industrial – prática que se mostrou ineficaz, com sérias consequências negativas para o setor.
Em síntese, um fato notório documentado amplamente pela literatura econômica é a estagnação da produtividade da economia brasileira há quatro décadas. Como consequência dessa estagnação, o país vem continuamente perdendo competitividade no cenário global. A reversão desse quadro exige uma série de modernizações regulatórias, dentre as quais a que o Projeto de Lei da “BR do Mar” introduz para o setor de cabotagem. Para garantir a efetivação dessas reformas, é premente que o Congresso brasileiro confirme a modernização do setor e não ceda à tentação de manter a cabotagem brasileira isolada da concorrência, o que equivale a deixar o setor literalmente “ancorado” na estagnação. Como Moisés levando seu povo, o custo de não abrirmos nossos mares é continuarmos perseguidos pelas consequências nefastas da baixa concorrência (o nosso “faraó” perseguidor) neste setor, o que constitui mais um vetor de perda de competitividade da economia brasileira.