iNFRADebate: A cegueira coletiva e seus riscos ao sucesso da abertura de mercado de transporte rodoviário coletivo interestadual de passageiros

Felipe Freire da Costa*

“Em terra de cego, quem tem olho é rei.” Esse foi o tema da minha redação de vestibular da Universidade Federal do Ceará. A redação era a prova mais temida entre os vestibulandos. Uma fuga de tema, apesar de todo o esforço de um ano de estudo, seria adeus à Faculdade de Engenharia Civil. 

Nunca tive dificuldade para escrever. Cresci entre os livros da Coleção Vagalume, Menino do Dedo Verde, Sidney Sheldon e uma imensa quantidade de HQs da Marvel e da DC. 

Mesmo tendo prazer em me deparar com uma folha em branco, ou uma tela, que seja, ainda hoje parece desafiador escrever sobre algo que te parece óbvio, que salta aos olhos. Nem todos os olhos, contudo, enxergam a realidade de uma mesma forma, e é bom que seja assim. Ocorre que na outra ponta existem olhos que se negam a enxergar, ainda que vejam tudo. Seriam inofensivos se não tivessem como missão a disseminação da cegueira coletiva, menos por ignorância e mais por interesse. Querem ser os reis de uma terra de cegos.

Ao longo dos últimos dois anos tenho me desafiado a escrever sobre o Trip (transporte rodoviário interestadual de passageiros), sobretudo àqueles que entendem o setor sob uma ótica distinta da minha. Essa troca de conhecimento e experiências é essencial para jogar luz sobre um debate relevante, ao mesmo tempo em que ajuda a diminuir os efeitos deletérios daqueles que apostam na cegueira coletiva para satisfação de interesses pessoais. 

Essa jornada teve início neste espaço de debate da Agência iNFRA, em que apontei os riscos de o setor de transporte interestadual se sujeitar à liberdade tarifária descasado de um ambiente de livre e aberta competição. Mais recentemente, aqui mesmo, tive a oportunidade de fazer um raio-x do processo de abertura de mercado de Trip e dos movimentos que representavam um risco de retrocesso aos avanços alcançados.

Em outro espaço, no LinkedIn, escrevi 22 artigos1 sobre aspectos variados do setor, desde meu preferido, o primeiro, em que tratei da edição da Deliberação 955/2019 e sua relevância para a abertura de mercado, até o último, celebrando o aniversário de 1 ano desse marco regulatório e alertando sobre o movimento do “coronelismo sobre rodas” e sua tentativa de manter o usuário de Trip como uma espécie de voto de cabresto do sistema de transportes.  

Antes de começar a tratar desse tema, é importante reafirmar o óbvio. Embora possa discordar do momento, que entendo inoportuno, a discussão sobre qual o melhor regime de delegação para prestação de serviço de Trip é cabível, e pode e deve ser travada, sem qualquer problema.

É importante que os atores da arena pública possam discutir as escolhas legais e regulatórias pretéritas e apresentar o resultado dessas decisões. Esses debates permitem não somente amadurecer o processo decisório, corrigir o rumo de ações que não geraram o resultado esperado, como, principalmente, prestar contas à sociedade dos efeitos das ações estatais.

Ressalto isso porque o PL 3.819/2020 poderia ter sido apresentado em decorrência do exame do resultado regulatório da Lei 12.996/2014, a partir de uma discussão ampla e democrática sobre os acertos e os erros da escolha legislativa ou dos rumos das decisões regulatórias derivadas dessa inflexão normativa.

Ocorre que a tramitação da matéria até então tem se revelado uma sinfonia de uma só voz, um monólogo patrocinado por uma parcela do setor que nasceu e cresceu sócia do capitalismo cartorial e que teme se sujeitar a um regime concorrencial divorciada de seu grande parceiro de décadas, o Estado.

– Porque o Estado sou eu! – diria o rei de uma terra de cegos.

Diferentemente do PLS 261/2018 – Marco Legal das Ferrovias –, apresentado pelo senador José Serra (PSDB-SP) e sob condução do senador Jean Paul Prates (PT-RN) no âmbito da Comissão de Serviços de Infraestrutura, ou do PL 3.549/2015, de iniciativa do ex-deputado federal Daniel Vilela (MDB-GO) e que após quase três anos de tramitação no Senado Federal resultou na aprovação da Lei 13.879/2019, o PL 3.819 não passou por qualquer das comissões permanentes daquela Casa Legislativa e não foi submetido a nenhuma audiência pública, sequer virtual. 

Citei esses dois exemplos e poderia citar outros, como o substitutivo ao PL 7.063/2017, conduzido sob relatoria do deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), sobre o Novo Marco Legal das Concessões. Em comum, além do amplo debate, esses processos dispõem sobre a possibilidade de utilização do instrumento autorizativo como outorga de prestação de serviço público, ou de atividades econômicas titularizadas pelo Estado, para fugir dos rigores da doutrina administrativista mais tradicional. 

São matérias antagônicas ao PL 3.819 e que tramitaram, ou ainda tramitam, sujeitas a um debate plural, essencial ao aprimoramento das proposições legislativas, mormente em se tratando da revisão de uma decisão recente deste mesmo Congresso Nacional, que aprovou o reposicionamento do Trip sob o regime autorizativo em 2014. 

A falsa controvérsia trazida a debate pelo PL 3.818, busca fundamento em uma aparente incompatibilidade entre um instrumento de autorização e a satisfação de alguns deveres da prestação de serviço público, como a universalidade e a continuidade, bem como alguns pressupostos de serviço adequado, a exemplo da modicidade tarifária. 

A dicotomia entre o exercício de atividade de interesse exclusivo do particular e a prestação de serviço público se encerra na medida em que os poderes constituídos, na forma da lei, estabelecem os preceitos por serem atingidos com a delegação da atividade ao particular.

Ou seja, conquanto toda caracterização doutrinária – de extrema valia – acerca das nuances das outorgas de autorização, em consonância com o pensamento de Carlos Ari Sundfeld2, a real natureza desse instrumento de delegação se amolda as disposições legais que a especificam.

Caberia, pois, ao legislador ordinário indicar o grau de densidade normativa a incidir sobre as atividades dos setores em que o Estado é titular da atividade econômica.   

E assim foi feito. A Lei 10.233/2001, modificada pela Lei 12.966/2014,  cotejou as características da atividade de transporte rodoviário interestadual de passageiros à luz do regime de autorização de forma a satisfazer não apenas os princípios gerais da atividade econômica, como também os pressupostos de prestação de serviço adequado e os deveres de universalização e continuidade.

E isso vem sendo alcançado, principalmente após a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) se desfazer da fantasia de hipertrofia regulatória, com seus mecanismos de burocracia estatal, cujos efeitos adversos são plenamente conhecidos. 

Os resultados desse primeiro ano de abertura do setor à concorrência demonstram o acerto do redirecionamento da atuação regulatória da agência. Os números comprovam, para além de qualquer dúvida, a aderência do Trip à natureza do regime autorizativo de prestação de serviço.  

Reside aqui a principal crítica ao PL 3.819 e suas emendas. A proposição legislativa não se presta a responder as questões relevantes do setor, embora embale sua narrativa nesse propósito. 

A mera comparação dos números atuais com aqueles previstos na licitação do sistema3, via Propass, já seria suficiente para despertar o sentido de cautela na tramitação do PL 3.819. 

Desde a edição da Deliberação n. 955/2019 – descontados os pedidos anteriores – a ANTT já recebeu requerimentos de solicitação de mais de 60.000 mercados, número 150% superior aos 40.000 mercados que havia no setor no final de outubro de 2019, e que o relator do PL quer manter, por meio da anulação de todas as autorizações deferidas desde então. Seriam anuladas aproximadamente 6.600 novas ligações4, outorgadas a 42 empresas – sendo 10 novas entrantes –, a maior ampliação na rede de atendimento de toda a história do setor. Dessas, cerca de 70% ligam cidades de estados distintos que jamais foram conectadas pelo serviço público de transporte rodoviário coletivo interestadual de passageiros. São números que crescem semanalmente, vez que existem aproximadamente 1.000 processos em tramitação na agência.

Esse mapa5 ilustra bem essa realidade. Em breve, mantido o regime autorizativo, cerca de 80% da população estará diretamente conectada à rede de transporte rodoviário interestadual de passageiros. 

Milhares de Joãos e Marias que passaram a ter acesso recentemente a um serviço público que jamais lhes fora prestado voltarão a ser alijados da rede de atendimento de Trip e terão limitado seu direito constitucional de ir e vir se o PL 3.819 e suas emendas for aprovado.

Somente as 10 novas empresas já investiram dezenas de milhões de reais apenas em frota de veículos e vêm ajudando a ampliar a oferta de empregos – diretos e indiretos – em todo o ecossistema que orbita em volta do mercado de Trip.  

Além dessas, boa parte dos grandes grupos empresarias6 que atuam no mercado, pertencentes às duas principais associações de empresas do setor, Abrati e Anatrip, já aumentaram sua participação no sistema de transporte interestadual após a abertura de mercado, a exemplo dos grupos Guanabara, Águia Branca, Gontijo, Rotas de Viação do Triângulo e Ouro e Prata, que praticamente dobrou o número de suas ligações outorgadas. 

Os números do setor respondem a todas as preocupações listadas por aqueles refratários à adoção do regime de autorização para o Trip: deveres de universalização e continuidade, princípio da isonomia no acesso ao mercado, livre concorrência, defesa do consumidor, melhor qualidade dos serviços e modicidade tarifária. 

Sobre esse último ponto, já se pode observar uma redução dos preços médios nas ligações, sobretudo naquelas com maior concorrência. Tomando como base os meses de março de 2019 e 2020, a redução dos valores médios praticados no serviço executivo, independentemente da distância e do número de concorrentes, foi de aproximadamente 9%. Essa queda percentual chega até 30%, a depender do estrato de distância percorrida e do número de empresas operando a linha.

Para surpresa de ninguém, a liberdade tarifária conjugada com a ampliação da competição concorre à modicidade tarifária.

Voltando ao PL 3.819, sua aprovação, sob a ótica do usuário, culminará na diminuição do número de localidades atendidas pelo sistema de transporte interestadual, reduzirá a oferta de serviço, não apenas em quantidade, como em diferenciação, e fará com que o usuário pague mais caro por um serviço não necessariamente de mais qualidade. 

Do ponto de vista do mercado, a sujeição do Trip a uma regulação contratual com prévia licitação deve manter o setor sob controle de grandes grupos empresariais, impossibilitando não apenas o ingresso das pequenas empresas – principalmente em ligações menos atrativas –, como de investidores e operadores estrangeiros, “startups” e empresas de tecnologia, que certamente dariam uma nova dinamicidade ao mercado nacional de transporte interestadual de passageiros. 

Para a administração pública a alteração seria catastrófica, pois representaria um incremento no custo da ação regulatória – não somente com o processo licitatório e seus estudos prévios7, como também, e principalmente, com o esforço de regulação contratual – sem o benefício correspondente ao usuário do serviço. 

Um exemplo clássico de mais Estado e menos cidadão, na contramão de tudo que vem sendo aprovado ou discutido pelo Congresso Nacional. 

Trata-se tão somente de uma constatação, baseada em evidências e não em achismos. Se os poderes legalmente constituídos decidirem por recolocar o setor de Trip sob o regime de permissão, a autoridade reguladora cumprirá seu papel. As lições aprendidas com o processo do Propass8 não foram esquecidas. 

Espero, contudo, nunca ter que escrever esse texto. 

Ainda parece difícil imaginar que quem tem olhos à realidade setorial possa sucumbir à influência daqueles que apostam na cegueira coletiva. 

Continuo apostando que, na era da informação, o rei está nu.

*Felipe Freire da Costa é especialista em Regulação de Transportes Terrestres da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), mestre em Engenharia de Transportes pela Coppe/UFRJ, com pós-graduação em Regulação de Transportes Terrestres pela UFRJ e em Direito da Regulação pelo IDP (Instituição Brasiliense de Direito Público).
1 https://www.linkedin.com/in/felipe-freire-da-costa-1b7b7018a/detail/recent-activity/posts/
2 “Em suma, a autorização terá ou não a nota de precariedade segundo o que houver disposto a lei. Doutrina não é lei, como se sabe.” SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Econômico. 1ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 394.
3 https://www.linkedin.com/pulse/como-estaria-o-setor-de-transporte-rodovi%25C3%25A1rio-se-sido-felipe/?trackingId=05AvvN%2FDsD6mkXJFLcik1g%3D%3D
4 Informação atualizada até o Diário Oficial da União do dia 29 de outubro de 2020.
5 https://www.linkedin.com/pulse/pol%25C3%25ADtica-p%25C3%25BAblica-baseada-em-evid%25C3%25AAncias-regula%25C3%25A7%25C3%25A3o-do-bruno-alvarenga/?trackingId=PKQ%2FyehUX66p8S%2Fsi8mkUA%3D%3D, acessado em 31 de outubro de 2020.
6 Outros operadores, como a Solimões Transportes, pertencente ao grupo Eucatur, mesmo já tendo mais de 70 pedidos indeferidos/arquivados, fez recentes solicitações para operar em mais de 3 mil novas ligações, que, caso deferidas, a transformaria na maior empresa do sistema interestadual de transporte de passageiros.
7 A ANTT dispendeu algumas dezenas de milhões de reais com os estudos do Propass e todo o processo licitatório do Trip, sem contar a massiva utilização de mão de obra nessa ação.
8 A licitação do sistema jamais ocorreu, muito por influência daqueles que hoje se dizem defensores do regime de permissão ao Trip.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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