Será que as normas de referência da ANA não podem ser vinculantes?

Juliano Heinen*

Uma das principais novidades do Novo Marco do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020) consiste no fato de que a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) pode emitir “normas de referência” no setor – o que é inédito no Brasil, porque nenhum outro ambiente regulado conta com esta estrutura ou sequer faz uma denominação parecida.

É algo bastante original. As tais normas funcionam como uma diretriz nacional em vários temas, como modelo tarifário, estrutura das demais agências, metas de universalização e perdas, cálculo de indenização de ativos etc.

Então, todo mundo começou a se perguntar qual a natureza e o efeito das referidas regras? Elas são vinculantes aos municípios, às agências reguladoras subnacionais, às companhias estaduais, às concessionárias, aos usuários? Responder a esta pergunta de uma ou de outra forma é tão, mas tão relevante que levaria o setor a ser repensado em muitos temas.

A resposta mais franca e repetida aos questionamentos é a seguinte: as normas de referências são de adesão voluntária, quase um soft law – eu até mesmo já disse isto. E os argumentos são mais do que sólidos. No entanto, queria convidar o leitor a pensar diferente, a ver que o tema poderia ser visualizado de outra maneira, defendendo a obrigatoriedade de tais regras em todo o país.

Compreendo que dar um voto ao pensamento diferente não é ser contrário ou a favor, é antes ser um curioso. Então, proponho a desenvolver os argumentos que defendem a não vinculatividade, para então propor uma segunda tese, a da vinculação.

Tese generalizada sobre a não vinculação
O primeiro argumento para defender que as normas de referência não são vinculantes se apega na literalidade do texto do novo marco, notadamente no art. 50, “caput” e inciso III – dispositivo complementado pelo art. 4º-B da Lei 9.984/2000 (Lei que criou a ANA).

Em suma, ali se estabelece que, os recursos federais somente serão entregues, na hipótese de se observar as normas de referência da ANA. Logo, leva-se a crer que a regulação em pauta não é vinculante, mas por adesão. O segundo argumento defende que, como a titularidade do serviço público é do Município (ou de uma estrutura regionalizada), não caberia à ANA regular uma atividade cujo domínio não é federal.

Outro dispositivo pode indicar que as normas de referência não são vinculativas é a parte final do § 2º do art. 4º-B da Lei 9.984/2000, porque determina a obrigatoriedade para “a adesão ano momento da contratação dos financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal.”. Então, a contrário senso, elas não seriam vinculativas em outras situações.

Tese a ser defendida acerca da vinculatividade
De modo direto e expresso, a Constituição Federal falou do saneamento básico em três momentos: (1) diz o art. 21, inciso XX, que compete à União instituir “diretrizes para o saneamento básico”; (2) há uma competência comum de todos os entes para promover os programas de saneamento básico (art. 23, inciso IX); e o SUS compete participar da formulação de políticas públicas no setor (art. 200, inciso IV).

Só por esta leitura, retiramos duas conclusões: (a) o constituinte não disse quem é o titular do serviço (quem o fez foi a Lei 11.445/2007 a partir das modificações da Lei 14.026/2020) e (b) no único momento em que o constituinte abordou a competência para legislar sobre o tema, determinou que compete à União estabelecer “diretrizes gerais”. De resto, nada mais disse.

Sendo assim, proponho ao leitor um raciocínio lógico muito simples: se as normas de referência são diretrizes gerais, a ANA, com base no referido dispositivo da CF/1988, poderia plenamente editar tais regras, as quais não dependem de nenhuma adesão ou anuência. Estaria a exercer a competência deferida pela Constituição.

Em outras palavras: se o constituinte deferiu à União a possibilidade de estabelecer diretrizes gerais, ele pode editá-las com caráter vinculativo – assim como o faz em outros setores. E o legislador deferiu esta capacidade a uma entidade federal da administração pública indireta.

E, por vários motivos, isto não violaria a prorrogativa da titularidade do serviço público deferida pela Lei 14.026/2020 ao município. De outro lado, lendo sistematicamente esta mesma legislação, fixou-se também expressamente a capacidade da ANA em editar normas de referência.

Então, seria contraditório que a mesma legislação fixasse a titularidade do serviço e alocasse um poder normativo a outra entidade. Mas não há contrassenso, porque a capacidade da ANA estabelecer “diretrizes gerais” advém do texto normativo de hierarquia maior, o que impõe uma leitura ou interpretação da lei conforme o texto constitucional. Isto porque, lendo sistematicamente o restante da lei que justamente regula o conteúdo das normas de referência, pode existir a ideia de “fixação de diretrizes” vinculativas.

Mas voltemos aos argumentos da tese que defende a anuência às normas de referência, e não sua obrigatoriedade, a qual possui lastro no antes referido art. 50 do novo marco. Pensamos que se poderia dar uma outra interpretação: ali não conteria um “incentivo à adesão”, mas uma sanção por quem descumpre normas vinculantes.

E uma “pista” desta ideia de penalidade aqui mencionada está no art. 23, § 1º-B, da Lei nº 11.445/2007: “Selecionada a agência reguladora mediante contrato de prestação de serviços, ela não poderá ser alterada até o encerramento contratual, salvo se deixar de adotar as normas de referência da ANA ou se estabelecido de acordo com o prestador de serviços.”.

Concluindo: a observância das normas de referência não é uma opção ou uma escolha, porque, caso assim não se o faça, há a possibilidade de rompimento do ajuste que a agência possui para com o titular do serviço – uma expiação grave, diga-se de passagem.

O objeto das normas de referência mantém a vocação de ser uma diretriz, na linha do texto constitucional. Por todos: veja que o seu conteúdo contemplará os “princípios estabelecidos no inciso I do caput do art. 2º da Lei 11.445/2007” (cf. art. 4º, § 2º, da Lei 9.984/2000).

E isto fica ainda mais evidente pela lista de matérias que podem ser abordadas pelas normas de referência, todas elas listadas no mencionado art. 4º. Além do mais, como diretriz que é, a norma de referência deverá ter como norte garantir a (1) uniformidade regulatória e a (2) segurança jurídica, estabelecendo padrões equalizadores de disparidades normativas praticadas nos cinco mil e quinhentos municípios brasileiros – art. 4º-A, § 7º.

E o legislador foi além: regulou que a ANA disciplinará, por meio de ato normativo, os requisitos e os procedimentos a “serem observados” pelas entidades encarregadas da regulação e da fiscalização dos serviços públicos de saneamento básico. E mais, fixará normas para “a comprovação da adoção das normas regulatórias de referência”. E tudo será gradual, a fim de se possa, com o tempo se adaptar – art. 4º-B, § 1º, da Lei 9.984/2000, inserido pela Lei 14.026/2000.

Pergunto: o texto legal parece fazer um “convite” à adesão? Não me parece. Tanto que o § 2º do mesmo art. 4º-B dispõe como se dará a verificação da adoção das normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Assim, estar-se-ia inclusive a fiscalizar quem não adota tais atos editados pela ANA.

Poder-se-ia ainda alegar que em nenhum momento o legislador disse claramente que a norma de referência seria vinculante ou por adesão. O art. 25-A trata da competência da ANA em editar tais regras para normatizar o setor, sem maiores digressões acerca da sua imperatividade ou não. Este dispositivo segue o mesmo conteúdo o art. 4º-A da Lei 9.984/2000 (que criou a ANA).

Contudo, perceba comigo que o mesmo legislador pode ter fornecido “pistas”. O art. 22 do novo marco lista os objetivos da regulação, e determina já ali que se o faça com “a observância das normas de referência” (art. 22, inciso I). E repete que as agências subnacionais também observem “as diretrizes determinadas pela ANA” (art. 23). Estes verbos no imperativo seriam um “convite” a respeitar as tais regras de referência? Novamente, parece-me que não.

Conclusão
Sem buscar outros artifícios fora do sistema jurídico constitucional e legal, ou seja, por meio de uma interpretação simples pode-se defender a tese de que as normas de referência são vinculantes a todos os operadores do sistema, independentemente se há ou não uma opção clara como condição para se receber recursos federais.

Esta ideia pretendeu demonstrar que não está presente no novo marco do saneamento uma alternativa em aderir ou não, porque, caso se descumpra as normas de referência da ANA, suportar-se-ão determinados ônus. E toda regra que é estruturada desta forma é vinculante: “descrição da conduta” + “preceito ou consequência”.

A tese posta entende que as normas de referência são diretrizes editadas para pautar todo o setor do saneamento básico, com a finalidade de uniformizar e dar segurança jurídica. E que o não cumprimento pode (1) ter como consequência a extinção do contrato com a agência; (2) o não recebimento dos mencionados recursos público da União.

Mas não só: (3) se são regras vinculativas, poder-se-ia anular as cláusulas contratuais, a regulação discricionária subnacional, os planos de saneamento em desacordo com as diretrizes da ANA. Em suma, pretendeu-se aqui expor duas teses contrapostas, e que podem ser plenamente defensáveis. Então e por fim, deixo a seguinte pergunta ao leitor: as normas de referência da ANA são ou não obrigatórias a todos? Você defenderia qual das teses?

*Juliano Heinen é consultor na área do direito regulatório, professor de direito administrativo, doutor e pós-doutor em direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e procurador do Estado do Rio Grande do Sul.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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