Opinião

Opinião – O vai e vem do nhem-nhem-nhem

Luiz Afonso dos Santos Senna*

A alternância de governo é parte fundamental da saudável rotina democrática. Eleições livres em todos os níveis fazem os ajustes que refletem a vontade popular. Os governos deixam heranças, boas ou não, consequência de convicções ideológicas e competência na gestão pública.

O ritmo da construção do país, que ecoa ao longo do tempo, é dado por esta sequência de eventos. Neste compasso a União, estados e municípios vão se moldando, com a permanente expectativa que o país possa ser uma nação coesa, sem os desequilíbrios sociais hoje observados e com níveis de desenvolvimento econômico elevados.

Contudo, o pragmatismo que a realidade nos impõe mostra que ainda estamos muito distantes desses objetivos almejados por todas as ideologias, partidos políticos e sociedade como um todo, no sentido mais amplo.

Os tentáculos do Estado se fazem presente em diversos ramos de atividade, da extração de petróleo às comunicações e às finanças, da administração de portos e aeroportos ao abastecimento alimentar e ao processamento de dados.

Levantamentos das secretarias do Tesouro Nacional e de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, em 2022, mostram que a União detém, de formas direta e indireta, o controle acionário de 131 empresas e participações minoritárias em outras 298.

Entre as 46 empresas controladas diretamente, cuja fatia no PIB (Produto Interno Bruto) é de 7,6%, 19 são deficitárias. Apenas em 2021, as empresas consumiram R$ 24,5 bilhões em recursos dos pagadores de impostos, cinco vezes mais do que em 2010. No total, de 2012 a 2021, a injeção da União para cobrir rombos de estatais atingiu R$ 160 bilhões, o equivalente a todo o gasto federal com saúde de 2022.

As empresas estatais possuem muitas amarras para fazer negócios e muita morosidade para tomar decisões, sem contar os baixos níveis de governança, e são emblemáticas no que se refere aos profundos e crônicos problemas do setor público brasileiro.

Considerando as necessidades prioritárias de segurança, relações exteriores e defesa, além de habitação, educação e saúde, entre outros, não faz sentido o Estado competir com a iniciativa privada na arena empresarial.

Dentro deste princípio, o Brasil evoluiu significativamente ao adotar programas de privatizações e concessões como forma de aumentar a eficiência da economia, a taxa de investimento e o crescimento, o que contribui e influencia diretamente na redução da pobreza e da desigualdade.

As sempre presentes restrições fiscais e as históricas dificuldades em garantir uma maior eficiência da atuação estatal nos setores de infraestrutura têm estimulado a busca por uma crescente participação de empresas privadas. O engajamento de investidores de forma mais efetiva requer um ambiente macroeconômico estável e a eliminação de restrições de caráter político e institucional.

A criação das agências reguladoras foi parte do esforço para dar estabilidade e previsibilidade no ambiente regulatório para viabilizar a participação do capital privado no provimento de infraestrutura. Investimento sem infraestrutura possuem longo prazo de maturação e tem como pressuposto a presença de economias de escala, de escopo e de integridade das redes.

Isto implica também na necessidade de regulação eficiente, independente do governo e autônoma. Neste contexto, a estabilidade e confiança no arcabouço regulatório reduzem a percepção de risco por parte dos investidores e podem estimular a esperada maior participação do setor privado em projetos de infraestrutura.

A existência de entidades autônomas confere a credibilidade necessária à atração e retenção do investimento privado nos setores de infraestrutura. Nesse sentido, é essencial o delineamento de estruturas e medidas que fortaleçam o arcabouço institucional e que viabilizem a plena autonomia e independência das agências reguladoras. 

É neste momento que surge o que pode ser definido popularmente como nhem-nhem-nhem, ou, como definido nos dicionários, conversas entediantes e intermináveis.

Um exemplo recente é o fato do ministro de Minas e Energia, que afirmou na Câmara dos Deputados que “criou-se uma desvinculação irrazoada” entre as agências reguladoras e os ministérios e que “se por um lado ela [agência reguladora] nos dá uma estabilidade institucional, em especial para atração de investimentos, por outro lado, não foi dado às agências reguladoras a estrutura ideal para cumprir seu ministério legal. Segundo, foi criada uma desvinculação irrazoada das agências reguladoras do formulador de política pública, que são os ministros de Estado e o Presidente da República“.

Finalizou dizendo que “Eu sou completamente avesso a esse tipo de estabilidade dada a qualquer agente público no exercício da sua missão“.

Sai governo, entra governo, variam as orientações ideológicas, mas parece haver um certo consenso entre os vários governos, que querem as agências, porém sem a necessária independência, condição sine qua non de uma agência reguladora.

Pouco antes das declarações do ministro, o Banco Central, o benchmark das agências reguladoras, foi fortemente atacado pela autoridade máxima do país. Fatos similares ocorrem também regularmente nos níveis estadual e municipal.

Declarações e ações que fragilizem as agências reguladoras são contraproducentes, pois tudo o que fazem é introduzir riscos adicionais, que são quantificados por potenciais investidores, que podem, no limite, simplesmente não participarem de leilões futuros.

Aliás, neste sentido, já existem casos de algumas indicações inadequadas para compor os corpos diretivos das agências, o contingenciamento orçamentos e investimentos, a defasagem salarial dos técnicos, entre outras ações que comprometem a necessária eficiência das agências.

De certa forma, o que se observa é a tentativa de resgate da infeliz proposta materializada na Emenda Aditiva 54 apresentada no Congresso Nacional à Medida Provisória 1.154/2023, que propõe redesenhar e desconfigurar o modelo regulatório brasileiro.

O modelo, concebido como parte da reforma do estado e implementado há 25 anos, é o principal responsável por dar segurança jurídica aos contratos de concessão, viabilizando a atração de investidores nacionais e internacionais para participarem do esforço de prover infraestruturas qualificadas e eficientes no Brasil.

A emenda sugerira ainda a alteração das leis de criação de todas as 11 agências reguladoras federais, com a redução do escopo das suas atividades, e a criação de “Conselhos ligados aos Ministérios e Secretarias Nacionais que atuarão nas funções de regulação, “deslegalização” e edição de atos normativos infralegais”, entre outras medidas.

O texto da emenda também desidratava o atual modelo regulatório, pois praticamente acabava com a função das agências reguladoras na sua principal atividade, a de regular.

Entre os absurdos propostos, a emenda também previa a criação de um modelo de regulação, que não guarda qualquer similaridade com nada existente no mundo, e que representa um elevado risco regulatório para a infraestrutura do País.

Se essas ideias se materializarem, a regulação dos contratos de concessão passaria a ser exercida por Conselhos ligados ao Governo, que muda a cada quatro anos, e não mais por um órgão de Estado, perene, estável, com decisões embasadas em elevado nível técnico, e com autonomia administrativa, financeira e regulatória.

Se tais iniciativas forem de alguma forma forem incorporadas ao arcabouço jurídico nacional, estar-se-á comprometendo a relação do Brasil com organismos internacionais, de financiamento, fomento, cooperação e desenvolvimento econômico, que exigem agências reguladoras autônomas, exercendo de forma plena o seu papel no ambiente regulatório.

As evidências dos resultados trazidos pela evolução e a qualidade do sistema regulatório, criado na década de 1990, par ao país podem ser observadas na quantidade de investimentos relacionados nos setores regulados, que significam expressiva parcela do PIB.

São resultado da desvinculação dos papéis de Poder Concedente, Regulador e Produtor, até então concentrados em uma única figura (o governo) e que agora incluem as agências reguladoras e empresas privadas, o que viabiliza maiores níveis de eficiência no fornecimento e gestão de serviços públicos.

O investidor necessita estabilidade e segurança, que significa trabalhar tão somente com os riscos assumidos, materializados nos contratos.

É absolutamente evidente que o fortalecimento das agências reguladoras deve afastar muitos riscos, dentre eles, a captura e o risco político, uma vez que o pressuposto é que sejam regidas por regramentos claros, transparentes e inequívocos.

Para reduzir a discricionariedade nas tomadas de decisão, as agências reguladoras possuem arranjos que visam prover as mesmas com governança qualificada, visando assegurar previsibilidade, tecnicidade, transparência e independência, itens fundamentais para uma agência que faça jus a esse nome.

Em caso contrário, ocorre o que tecnicamente é denominado “captura”, ou a subordinação às vontades de algum dos grupos de interesse envolvidos, como as concessionárias, os usuários e o próprio governo. Este vai e vem de nhem-nhem-nhem, recorrente, pequeno e cansativo, só materializa um profundo equívoco e a falta de visão estratégica; pode significar, na prática, o desmantelamento do processo regulatório e, por consequência, o afastamento dos investidores sérios e infraestruturas aquém das necessidades econômicas do país.

*Luiz Afonso dos Santos Senna é PhD em transportes, professor titular da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), ex-diretor da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e ex-presidente da AGERGS (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto

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