Opinião

Opinião – Mutabilidade dos contratos administrativos, soluções consensuais e o papel do Tribunal de Contas da União

Flávio Amaral Garcia*

Recentemente tive a honra em participar de importante seminário organizado pelo TCU (Tribunal de Contas da União) sobre o consensualismo na administração pública.

O presente artigo reflete as principais ideias que apresentei no seminário sobre o instigante tema proposto, a saber, as soluções consensuais com relação à mutabilidade dos contratos administrativos e os seus limites.

Necessário, em primeiro lugar, contextualizar o estado da arte dos contratos administrativos, notadamente os contratos concessionais, que se inserem na categoria de contratos de investimentos.

Como tenho assentado em recentes escritos, a regulação dos contratos concessionais, por mais efetiva e eficiente que se apresente, não é capaz de antecipar todas as circunstâncias e fatos supervenientes que podem impactar os direitos e obrigações das partes.

Em termos objetivos, não é possível uma perfeita cognição do futuro a partir das expectativas, dados e cenários do passado. Na correta metáfora do professor da Universidade de Wisconsin Stewart Macauly, contratos de longo prazo não são fotografias, mas filmes.

Os contratos administrativos – designadamente os contratos concessionais – encontram na mutabilidade uma das suas características intrínsecas. As categorias tradicionais oriundas do Direito Administrativo francês que lidam com a questão da mutabilidade (teoria da imprevisão, fato do príncipe, fato da administração, sujeição imprevista), conquanto ainda úteis, não são mais suficientes para resolver as vicissitudes que acometem relações contratuais públicas de longo prazo.

Daí a importância da alocação dos riscos entre as partes, o que contribui para tratar a mutabilidade não como uma circunstância externa à sua regulação, mas como parte fundamental e integrante da sua substância. É o que os franceses denominam de cláusula de adaptabilidade substancial.

Nada obstante a evolução percebida pela alocação de riscos, fato é que existe uma incapacidade de prever todas as consequências para as infinitas variáveis e contingências que podem impactar os contratos concessionais.

Tem-se então a aplicação da teoria econômica dos contratos incompletos, com o reconhecimento de que existirão lacunas (súbitas ou deliberadas) que demandarão uma relação cooperativa e pautada em comportamentos de boa-fé das partes, a fim de que tais lacunas sejam preenchidas a partir das novas realidades econômicas, financeiras, tecnológicas, sociais e políticas que se apresentem.

Em cenários contratuais públicos com essas características, a renegociação dos contratos se apresenta como uma decorrência natural da mutabilidade e da incompletude dos contratos. 

Durante muito tempo houve um certo dogma com a temática das renegociações contratuais. Partindo da premissa de desconfiança (o que só aumenta os custos de transação), toda e qualquer renegociação de contrato era tida como consequência de comportamentos oportunistas dos concessionários, ainda que ausente qualquer comprovação empírica que embasasse a afirmativa genérica.

Houve, entretanto, um amadurecimento político, institucional e jurídico do tema.  A partir das premissas do consensualismo do Direito Administrativo contemporâneo – disseminado em diversos campos da atuação administrativa com excelentes resultados – finalmente se percebeu que renegociar contratos não é crime, nem necessariamente gera prejuízos para o atendimento dos públicos interesses. Muito ao contrário.

Existem, entretanto, dois limites materiais que conformam tais renegociações, a saber, a concorrência e a intangibilidade do objeto

Com relação à concorrência, é necessário cuidar para que as regras que estruturam o processo de licitação não sejam injustificadamente deturpadas nas renegociações dos contratos.

Mas, atenção: isso não coloca a licitação como um óbice instransponível para as renegociações. No mais das vezes, a ocorrência de fatos supervenientes – não previstos na época da licitação – alteram completamente a base objetiva do negócio que originalmente embasou a licitação, a justificar maior amplitude para as renegociações de contratos.

A manutenção das condições originais do contrato pode ser – ao contrário do que se possa supor – inviável à luz das novas circunstâncias que se apresentam.

A preservação do negócio jurídico é um valor que pode e deve ser sopesado quando se inicia qualquer processo de renegociação de contratos administrativos, notadamente quando amparado em estudos e justificativas técnicas dos órgãos ou entidades públicas dotados de capacidade institucional para proceder tais avaliações.

O STF (Supremo Tribunal Federal), por ocasião do julgamento da ADI 7048 (Ação Direta de Inconstitucionalidade 7048), decidiu nesse sentido, validando a constitucionalidade de decretos editados pelo Estado de São Paulo que autorizavam a prorrogação antecipada, pelo prazo de 25 anos, de concessão de serviço de transporte coletivo intermunicipal por ônibus, a partir de estudos técnicos justificados pelos órgãos competentes.

A intangibilidade do objeto, por sua vez, decorre de uma constatação óbvia: não se pode alterar o contrato de concessão de tal maneira que deturpe ou desnature por completo o objeto originalmente licitado.

Observados tais limites – o que depende sempre de análise casuística – fato é que existe amplo espaço para renegociação dos contratos administrativos, em especial os concessionais, dada a sua mutabilidade e natural incompletude.

Renegociar tais contratos pode ser, em diversos casos, a melhor forma de resolver impasses complexos que, não raro, surgem em contratos públicos de longo prazo.  A depender da situação concreta, não renegociar pode causar prejuízos com a penosa extinção do contrato e assunção do custo de elevadas indenizações, além, obviamente, de danos aos usuários e à sociedade, com a perpetuação de complexos litígios.

Além dos limites, outra indagação relevante consiste em investigar as causas da renegociação. Tais causas podem ser das mais diversas origens e, igualmente, impactar diretamente na própria dimensão e conteúdo da renegociação.

Mudanças abruptas de cenários econômicos, problemas na modelagem original, comportamentos oportunistas dos concessionários, excesso de otimismo no leilão e tantas outras razões podem se suceder durante uma relação contratual pública de longo prazo.

Nem sempre será singelo identificar ou mesmo isolar uma única causa da renegociação.  Muitas vezes a renegociação terá por gatilho um plexo de causas que se comunicam de modo interdependente.

E as renegociações – dada a sua complexidade – ganharam um enorme impulso com a criação no âmbito do TCU da SecexConsenso. Trata-se de iniciativa louvável que incrementa sobremaneira a segurança jurídica nas renegociações, considerando, em especial, o protagonismo que os órgãos de controle assumiram nas questões que envolvem a gestão pública brasileira.

A consensualidade precisa de mecanismos que a efetivem e, indubitavelmente, o espaço criado pelo TCU se desvela como indicado para destravar as renegociações de contratos públicos complexos e de longo prazo.

Soluções consensuais pressupõem maior discricionariedade e autonomia negocial das partes envolvidas na busca de acordos, a partir da realidade que se apresenta em cada contrato. As soluções serão customizadas. Não existe uma “bala de prata”. Tanto melhor que tais negociações se desenvolvam em ambientes institucionais garantidores da segurança jurídica, como é o caso da SecexConsenso.

O exercício da consensualidade não tem um “dono”. O modelo do Direito Administrativo tradicional não tem funcionado para as renegociações, seja pela dificuldade das partes em alcançar consensos em complexas controvérsias nos contratos concessionais, seja em razão da ausência de segurança jurídica na manutenção do que foi acordado.

O TCU pode contribuir decisivamente nos dois aspectos. Lembre-se bem: renegociações exitosas, justas e transparentes têm como principais beneficiários os usuários dos serviços públicos e a própria sociedade. Como dizia o mestre e querido professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o consenso é o cimento das civilizações. Sigamos nessa direção…

*Flávio Amaral Garcia é professor de Direito Administrativo na FGV Direito RJ (Curso de Direito da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro); doutor em Direito Público pela Universidade de Coimbra; procurador do Estado do Rio de Janeiro; e sócio do Escritório Tauil & Chequer.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto

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